de Afonso Nilson
direção Vicente Concilio
com
Drica Santos e Milena Moraes
Dos sucessivos confrontos entre a mãe de uma mulher cumprindo pena de privação de liberdade e uma policial penal, nasce uma relação complexa, que revela as consequências do encarceramento para quem está do lado de fora dos muros.
Ficha Técnica
La Vaca Companhia de Artes Cênicas apresenta
Revista Íntima
de Afonso Nilson
Direção: Vicente Concilio
Com Drica Santos e Milena Moraes
Luz, som e projeções: Hedra Rockenbach
Assistência de operação: Carolina Souza Nunes
Figurinos: Karin Serafin
Confecção de figurinos: Vanilla Atelier de Arte
Interlocução artística e Cenografia: Renato Turnes
Arte gráfica: Lara Lodi
Fotografias projetadas: Sidinei Brzuska
Fotos: Caio Cezar e Cristiano Prim
Consultoria de acessibilidade: Thuanny Galdino e Márcia Caspary
Assistência de produção: Nataly Delacour
Produção: Milena Moraes e Renato Turnes
Produção executiva: Milena Moraes
Agradecimentos
Ashley Lucas, Cleide Cruz, Dione Carlos, Equipe do Presídio Feminino de Florianópolis,
Esteban Campanela, Jasmily Moraes Campanela, Jeniffer Moraes Campanela,
Oto Bezerra, Sandro Clemes, Thiago Soares de Calais, Zelia Sabino
Em 2024, La Vaca Companhia de Artes Cênicas celebra 16 anos de trabalho. Desde sua origem, a companhia se destaca pelo desenvolvimento de processos criativos singulares, que resultam em espetáculos comprometidos com discussões urgentes para a sociedade brasileira.
Em sua nova montagem a companhia volta-se para a realidade prisional brasileira e se propõe a investigar de que forma o teatro pode infiltrar-se através dos muros da prisão, penetrando camadas invisíveis que separam a realidade das mulheres encarceradas dos olhos da sociedade e, consequentemente, do debate público.
Revista Íntima é uma obra escrita por Afonso Nilson para duas atrizes, que aborda os efeitos da prisão nas vidas atingidas, direta ou indiretamente, pelo processo de encarceramento em massa que transforma o Brasil no país com a 3ª maior população prisional do mundo.
A proposta de direção opta por decisões no âmbito da representatividade do elenco, no sentido de investigar a forma com que a questão racial impacta os sentidos que o espetáculo pode construir para a audiência.
O processo de montagem foi compartilhado com mulheres cumprindo pena de privação de liberdade e incluiu visitas ao Presídio Feminino de Florianópolis, nas quais elas participaram de leituras do texto, ensaios e apresentações fechadas. O projeto promoveu também ações públicas de caráter reflexivo, por meio de encontros com a professora da Universidade de Michigan Ashley Lucas e com a dramaturga Dione Carlos.
O espetáculo é resultado do projeto Infiltração: teatro e encarceramento feminino na montagem do texto Revista Íntima, contemplado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura 2023.
Vicente Concilio, diretor Em 2001, eu entrei em um presídio pela primeira vez. Era a Penitenciária Feminina do Tatuapé, uma unidade que não existe mais. Ali eu já me deparei com muitos dos absurdos que o aprisionamento concentra: as injustiças estruturais de nossa sociedade – o racismo, o machismo e o desejo de punir a pobreza. Desde então, desenvolvo ações artísticas e pedagógicas conectadas ao universo das prisões, sobretudo por meio de ações de pesquisa e extensão que coordeno como docente do curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Udesc. Agimos dentro dos muros com o desejo real de que as celas desapareçam. A pena de privação de liberdade, aparentemente uma solução óbvia para quem descumpre as normas da sociedade, é uma estrutura que gasta de forma equivocada nossos impostos, fortalecendo o crime organizado e direcionando o foco da punição para a população periférica. Encenar Revista Íntima é uma estratégia de trazer essas reflexões para quem está do lado de fora dos muros. O texto é o confronto entre uma policial penal e a mãe de uma mulher que cumpre pena de privação de liberdade. A revista íntima é só um pedaço das humilhações – a maior delas é que familiares também cumprem pena, acompanhando à distância a inutilidade da prisão. Do texto para a cena, outras camadas de sentido foram sendo sobrepostas. Do trabalho das atrizes à proposta de encenação, nosso desejo é que a cena mobilize um debate cada vez mais necessário sobre o encarceramento. Sobretudo em relação ao racismo que ele promove. Para nós que acreditamos que o teatro ganha relevância quando move questões de nosso tempo, essa peça é parte de nosso manifesto pelo desencarceramento. Agimos fora dos muros com o desejo real de que as celas desapareçam.
Afonso Nilson, dramaturgo A Justiça, muitas vezes, é repleta de injustiças. Mães e esposas que são forçadas a se submeter a revistas invasivas, horários restritivos e condições humilhantes para acompanhar seus familiares estão sendo também punidas. Não se reeduca uma pessoa inserindo-a forçadamente a privações sanitárias e alimentícias, à insegurança e ameaças de violências constantes. O medo e a privação não corrigem ninguém, geram apenas mais violência e enaltecem a vingança e a tortura institucionalizadas como método. Nesse contexto, as personagens de Revista Íntima, sua cumplicidade em sofrimentos que as conectam, traçam talvez uma pequena esperança que surge sempre que alguém se comove com a dor alheia. Uma mãe sem poder ajudar a filha aprisionada, e uma filha sem poder ajudar a mãe doente, tendem, de algum modo, a partir das dores que as unem, a sugerir que mesmo nas circunstâncias mais severas e degradantes é possível vislumbrar uma fresta, um pequeno espaço para condescendência, para o altruísmo ou para a esperança de uma sociedade menos insensível, cruel e desumana. Pensar que esse texto ganha agora a leitura de um diretor teatral como Vicente Concílio, que tem o sistema carcerário brasileiro como objeto de estudo, e de atrizes com uma trajetória tão contundente como Milena Moraes e Drica Santos, não apenas me enche de orgulho como autor, mas me faz crer que o teatro continua sendo voz e força que conecta pessoas para repensar um mundo cada vez mais carente de diálogo.
Renato Turnes, Interlocução Artística Meu trabalho na montagem de Revista Íntima foi o de estimular diálogos criativos e provocar reflexões sobre as escolhas do grupo no campo da estética do espetáculo. Presenciei o desenvolvimento do jogo entre as atrizes a partir da investigação autônoma do texto e a apropriação, por parte delas, do desafiante dispositivo de representação proposto pela direção. Esse dispositivo, a meu ver, é singular em sua potência, pois na aparente simplicidade da repetição e inversão de personagens habita um sentido profundo da ação teatral: denunciar aprisionamentos do imaginário. Todos os outros elementos constituintes da cena se organizaram ao redor desse dispositivo central. A opção pelo projetor como fonte principal de iluminação e os ângulos retos e duros resultantes. A trilha sonora metálica e dissonante. A manipulação dos poucos elementos cenográficos, sínteses da paisagem narrativa do texto. Os figurinos monocromáticos que simbolizam lugares de poder e de não poder nada. As invasões pontuais do real na forma de som e imagem projetada. Tudo que é visto, ouvido e sentido em cena é resultado do compromisso com a presença dos corpos das atrizes. Tudo que fizemos foi em atenção aos sentidos que esses corpos carregam no simples feito de existirem. Desses corpos agindo surge o teatro. Onde termina a atriz e começa a personagem? Essa é talvez a pergunta mais antiga do nosso ofício. Não canso de me assombrar com esse movimento misterioso. Há algo de ritual em despir-se de tudo, em viver uma trama inventada e, ao mesmo tempo, contar a experiência de sua própria pele. Ao descrever o que fizemos, eu lembro da foto de um poema árido, escrito a carvão na parede de uma cela, que falava da dor de uma mãe. É essa emoção estranha, algo comovente por surgir onde beleza alguma poderia nascer, que compartilhamos agora.
Drica Santos, atriz Sinto-me honrada em fazer parte como atriz deste processo que trouxe descobertas e desafios. Criar Margarida e Salete trouxe implicações poéticas e éticas para mim enquanto atriz negra. No doutorado, eu refleti sobre este lugar do negra vir antes da atriz devido às relações sociais operadas pelo racismo, e discuti o neologismo negratriz em processos criativos. Neste projeto, pude desenvolver essas reflexões ao me deparar com a complexidade dos atravessamentos e discursos que aparecem nas falas de ambas as personagens, pois uma atriz negra falando determinado texto não é o mesmo que uma atriz branca cunhando esta mesma fala. Em alguns momentos, foi (ainda é) penoso sair de minha boca certos discursos da personagem Salete, por exemplo. Este foi um dos meus desafios como atriz. Como abordar a personagem sem reforçar estereótipos que envolvem as contradições de ser uma policial penal negra? E assim fomos caminhando nesta complexidade tecida pelas tensas relações étnico-raciais que, infelizmente, ainda permeiam nossos contextos. Durante o processo de criação/relação com as personagens, buscamos fugir do maniqueísmo e abordar nosso trabalho como forma de explicitar esta complexidade que tangencia a vida de mulheres (em suas diversidades) no contexto prisional. Desse modo, foi inevitável que meu corpo negro trouxesse suas potências e referências para estas personagens, suscitando uma reflexão sobre o casamento sórdido entre o cárcere e o racismo.
Milena Moraes, atriz Em Revista Íntima sou atravessada pela minha experiência como mãe de duas meninas negras. A maternidade vem me entregando o que há de pior e de melhor em mim, me faz reencontrar sombras que pensava já tivessem ganhado a luz. Ser mãe também me dá um sentimento de alegria e orgulho superlativo pelas minhas crias e disposição para enfrentar sistemas, e é inevitável acessar tudo isso no meu processo de criação. A força da mãe que não tem permissão de desistir me comove. A montagem invoca o lugar de mãe, de filha e de cuidadora. São papéis que assumo na vida e que, em cena, revezo com minha parceira Drica Santos. Estar ao lado de Drica, mulher negra com quem compartilho experiências a partir do meu lugar radicalmente diferente de mulher branca, me convoca a pensar em como nossas trajetórias se cruzam e se distanciam justamente por esses marcadores sociais. Onde nós, pessoas brancas, encontramos a autorização para enfrentar uma pessoa negra em posição de poder, como se esta fosse subalterna? O que faz com que uma pessoa negra em posição de poder mantenha a calma diante da provocação de uma pessoa branca? Questões como estas estão presentes na encenação e fazem com que criemos 4 personagens distintas, mas que se reconhecem aprisionadas: você é tão coitada como minha filha, e eu, e todas essas mulheres que você humilha, diz Margarida quando declara ter mais pena que ódio de Salete. O encarceramento borra as individualidades das mulheres, transformando-as em uma massa gris e uniforme, mas o cinza não é capaz de cobrir a cor da pele. Esta é a diferença que resta, a marca que define quem é mais punida. Como atriz, me coloco à disposição para a conversa necessária sobre quais corpos ocupam o centro e quais são afastados para as margens, e para pensarmos juntas sobre um futuro onde a punição não seja o principal ponto de encontro entre mães e filhas.
Trajetória
Outubro de 2024 - Temporada de estreia no Teatro Carmen Fossari - Florianópolis/SC
Curadorias
Downloads
- Rider Técnico/mapas de som e luz
Solicite o vídeo do espetáculo na íntegra através do email cialavaca@gmail.com